terça-feira

O ÚNICO PECADO

Será necessário que professemos o Espiritismo e creiamos nas manifestações espíritas, para termos assegurada a nossa sorte na vida futura?

Se assim fosse, seguir-se-ia que estariam deserdados todos os que não creem, os que não tiveram ensejo de esclarecer-se, o que seria absurdo. Só o bem assegura a sorte futura. Ora, o bem é sempre o bem, qualquer que seja o caminho que a ele conduza.

- Mamãe, quero ser batizado.

- Por que, meu filho?

- Meus amiguinhos, na escola, dizem que irei para o Inferno.

Diálogos assim exprimem as dificuldades de crianças cujos pais participam de movimentos religiosos onde não há o batismo que, segundo a orientação ortodoxa, promove nossa reconciliação com Deus, após uma briga que não foi nossa.

Os culpados teriam sido Adão e Eva, expulsos do Paraíso por cometerem o pecado da desobediência. Sua culpa, como se fora infalível mácula genética, transmitir-se-ia, desde então, a todos os descendentes do mitológico casal, impedidos de uma comunhão plena com Deus até que se submetam às virtudes mágicas daquele ritual.

O batismo foi durante muitos séculos um dos instrumentos de afirmação do catolicismo, a impor como axioma um lamentável equívoco dogmático: "Fora da Igreja não há salvação".

Qualquer pessoa medianamente informada sabe que semelhante concepção teológica é uma aberração, porquanto bilhões de seres humanos têm transitado pela Terra, ao longo dos séculos, sem nenhuma notícia a respeito do assunto, sem nenhum esclarecimento quanto às supostas propriedades redentoras da pia batismal.
Nada disso encontra respaldo nas lições de Jesus, que ensinava: "A cada um segundo suas obras" (Mateus, 16:27), estabelecendo o princípio da responsabilidade individual.


Não nos pedirão contas, na Espiritualidade, da religião que professamos, e muito menos dos rituais a que nos submetemos. Pesará, na avaliação de nossa existência, apenas o conteúdo de nossas ações, considerando-se que tanto mais se exigirá quanto mais ampla a nossa noção do bem e do mal, do certo e do errado, do que devemos ou não fazer...

A pretensão de deter o monopólio da verdade e o endereço da salvação caracterizam as religiões de um modo geral, originando preconceitos execráveis e absurdas discriminações que não raro desembocam em lutas fratricidas, como se o objetivo da religião fosse a guerra, não a paz; a discórdia, não o entendimento; o ódio, não o amor.

Maomé, o fundador do Islamismo, encarna bem essa tendência, estabelecendo que os adeptos de outras religiões, deviam ser convertidos ou eliminados, na aplicação do terrível "crê ou morre". Ainda hoje, muçulmanos exaltados defendem uma revolução islâmica armada, uma guerra sem tréguas aos "infiéis".


Os reis cristãos da Europa medieval não fizeram por menos, disparando as famigeradas cruzadas em que, a pretexto de libertar o solo sagrado da Palestina, em poder dos árabes, converteram o Cristianismo em bandeira de guerra e a figura augusta do Cristo em inspiração da violência e da morte.

Jesus enfrentou problemas semelhantes com seus próprios compatriotas, um povo fanático que alimentava a pretensão de ter sido escolhido por Deus para elevar-se ao domínio das nações. E acabou sendo sacrificado porque pregava a revolucionária ideia de que aos olhos do Criador a importância de um homem não está em sua nacionalidade ou crença que professa, mas na quantidade de benefícios que seja capaz de prestar ao próximo.

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O Espiritismo oferece uma visão muito objetiva a respeito destas questões, a começar pela palavra "salvação", que em seu sentido escatológico, de consequências finais, tradicionalmente sugere a absurda ideia de que há almas que se perdem, condenadas a irremissível sofrimento, o que contraria frontalmente os atributos divinos.

Sendo Onisciente - tudo sabendo do presente, passado e futuro - porque consumaria Deus a criação de um Espírito, sabendo que iria perder-se?


Como considerá-lo Onipotente, se não consegue impedir que seus filhos se percam irremediavelmente?


Infinitamente misericordioso, não deveria o Criador conceder infinitas oportunidades de reabilitação às criaturas transviadas?

Por isso, superando o abominável sectarismo que divide as religiões, Kardec desfraldou como bandeira da Doutrina Espírita um princípio universalista: "Fora da Caridade Não Há Salvação".


A Deus não importa que religião professamos. Nosso Pai espera apenas que nos comportemos como seus filhos, reconhecendo que a fraternidade (parentesco de irmãos), impõe o dever elementar de nos ajudarmos uns aos outros, sem o que jamais estaremos "salvos" de desentendimentos, brigas, violências, explorações, desequilíbrios, frustrações e muitos outros problemas que fazem a infelicidade humana.

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Discute-se nos círculos religiosos quais os pecados mais danosos, capazes de precipitar a perdição humana. A tradição teológica chega a enumerar os "capitais": orgulho, avareza, luxúria, gula, ira, inveja e preguiça.


Na verdade, só há um pecado, no sentido de transgressão, de descumprimento da vontade de Deus: a falta de amor ou, mais exatamente, o amor voltado para nós mesmos, na exaltação do egoísmo.


Tudo o mais, todos os nossos comprometimentos com o mal, nascem desse pecado original, desse amor retido, desse amor fechado em si mesmo, que nega sua própria vocação - doar-se; que contraria sua gloriosa finalidade - estabelecer a comunhão entre os filhos de Deus.

A caridade salva-nos dessa suprema contradição, ajudando-nos a libertar o amor para que o amor nos redima.



De "Um jeito de ser feliz", de Richard Simonetti

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